Resenha – “O Uraguai”, de Basílio da Gama


O Uraguai, de Basílio da Gama, poema épico de 1769, no início do Arcadismo brasileiro (1768-1836), é um dos grandes poemas épicos cultivados no Brasil Colônia.

O traço mais comumente destacado pela crítica em O Uraguai  (1769), de Basílio da Gama (1741-1795), é seu flagrante antijesuitismo, explicitado ainda nas notas que o autor acrescentou ao texto desde sua primeira edição. De fato, não resta dúvida quanto ao empenho do poeta em denegrir os padres da Companhia de Jesus, apresentados, no poema, como mentores dos índios que se opuseram ao general português Gomes Freire de Andrade no episódio histórico da remoção das missões jesuíticas espanholas da banda oriental do rio Uruguai. Seriam os padres, portanto, e não os índios, na verdade apenas “bons selvagens” perfidamente mal orientados pelos seus mentores, os verdadeiros responsáveis pela resistência oferecida à execução do Tratado de Madri, de 1750. Por outro lado, o poema exalta as virtudes ilustradas do general, qualidades que existiriam também, em condições superlativas, aliás, no verdadeiro homenageado do poema: o então Conde de Oeiras e futuro Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho, a quem é dedicado o soneto que antecede o poema. Deste modo, O Uraguai é, em última instância, um canto de louvor à Ilustração, de que Sebastião José de Carvalho, como déspota esclarecido, na condição de ministro plenipotenciário do Rei D. José, seria lídimo representante. Quanto a este ponto, não há divergências entre os críticos, pelo menos na essência.

Anazildo Vasconcelos da Silva, refutando a incidência lírica no poema como impedimento à epicidade do texto, e levando em conta que “são os índios que, ao nível do relato, satisfazem as exigências épicas do herói”, afirma que “O Uraguai, considerado a partir da perspectiva indígena, é uma epopeia legítima e Cacambo, seu verdadeiro herói”.

O fundamento histórico do poema é a expedição do Governador do Rio de Janeiro às missões jesuíticas espanholas da banda oriental do rio Uruguai, cujos índios se haviam rebelado contra a entrega dos seus Sete Povos (São Borja, Santo Ângelo, São João, São Lourenço, São Luís, São Miguel e São Nicolau) em troca da colônia portuguesa do Sacramento, praça militar que os portugueses haviam fundado em 1680 na margem cisplatina, em frente mesmo a Buenos Aires como decorrência do Tratado de Madri, firmado por Portugal e Espanha em 1750 e que visava a revogar os termos do Tratado de Tordesilhas, de 1494, com o qual as duas potências ibéricas partilhavam entre si as terras a serem descobertas nos dois hemisférios. Narra-se nele a vitória do general português, em 1756, após a fracassada embaixada dos chefes indígenas Sepé e Cacambo, que tentam demovê-lo da missão. O primeiro morre no combate que se segue. O segundo, após um sonho em que lhe aparece Sepé, ateia fogo à vegetação em torno do acampamento dos brancos e foge em seguida para sua aldeia. Ali, por maquinações do padre jesuíta Balda, é preso e morto, para que sua esposa, Lindoia, possa desposar Baldetta, protegido do padre, talvez seu filho. Por artes da feiticeira Tanajura, Lindóia tem uma visão profética do terremoto de Lisboa, de sua reconstrução pelo Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal, e da derrocada final de Ordem dos Jesuítas. As tropas de Gomes Freire de Andrade avançam contra a aldeia indígena, onde aconteceria o casamento de Lindoia com Baldetta. Esta, fiel à memória de Cacambo, foge para um bosque próximo e lá se deixa picar por uma serpente venenosa, morrendo em seguida. À chegada do general português e suas tropas, todos fogem, incendiando a aldeia, por incitação dos padres. Gomes Freire de Andrade penetra na aldeia, vitorioso, mas triste, pois fora obrigado a usar da força das armas para dobrar os índios e fazer valer os desígnios dos reis de Portugal e Espanha, o que desagradava à sua índole essencialmente civilizadora.

A idealização do índio existe, mas ela não se inclina apenas para a figuração singela do bom selvagem, ingênuo e natural, mas também para a sua elevação ao nível do homem branco, civilizado. Cacambo e Sepé discursam em pé de igualdade com o poderoso general português, e não apenas porque sejam favorecidos por circunstâncias eventuais: estão em seu habitat, move-os a emocionalidade da defesa da terra a qualquer preço; mas porque são dotados de qualidades de liderança complementares um em relação ao outro: a ponderação de Cacambo, a que não falta, porém, coragem, é correspondida pela impulsividade de Sepé, sem que este, por sua vez, seja desprovido de bom senso, como visto acima. Essa distribuição equitativa de virtudes entre os dois chefes guaranis serve ao engrandecimento da ação vitoriosa do herói do poema, fazendo dele o contendor capaz de tanto enfrentar armas – que os índios, aliás, não possuíam – quanto razões alheias.

Entretanto, de um modo geral, da perspectiva do poeta-narrador, a despeito de ter sua condição efetivamente elevada em relação às representações literárias anteriores a O Uraguai, o índio é ainda objeto de uma vontade superior, a dos padres jesuítas que, aproveitando-se de sua inocência, de sua condição de bom selvagem, o instigam contra o poder civil representado pelo general Gomes Freire de Andrade. Assim sendo, o serem inocentados da “perfídia” de livremente se oporem às determinações dos poderosos da Europa, pois são apenas instrumentos de que se valem os “bons padres”, resulta na afirmação de sua recôndita inferioridade. Esses “bons padres” jesuítas são o alvo verdadeiro do discurso político do poeta-narrador, representam a reação obscurantista contra a racionalidade iluminista do Conde de Oeiras, futuro Marquês de Pombal. Os índios não são, no fundo, os verdadeiros culpados da afronta sofrida pelos reis de Espanha e de Portugal, de modo que o antagonista implícito do herói é a figura genérica do padre jesuíta, cuja Ordem era a responsável pela experiência das Colônias dos Sete Povos das Missões, e a quem o poeta, para caracterizá-la, reserva expressões alegóricas inteiramente negativas, tais como Ignorância, Inveja, Discórdia, Furor, Hipocrisia (Canto III, 274-276), e cuja obra junto aos índios é chamada de “infame República” (Canto V, 136). Nesse embate entre os dois poderes, o da Companhia de Jesus, cujo braço armado seriam os índios inocentes, e o do general Gomes Freire de Andrade, representante dos governos de Portugal e de Espanha, o índio – “o rude Americano” – é duplamente derrotado: pelas armas, como de fato o foi no plano histórico, e pela prevalência da razão do colonizador, como pensa o poeta-narrador.

Pode-se dizer que O Uraguai prenuncia, sim, o indianismo romântico de Gonçalves Dias e José de Alencar, mesmo considerando-se a posição secundária do índio, de vez que o herói do poema é, sem sombra de dúvida, o general português Gomes Freire de Andrade. A altaneria dos índios românticos de Gonçalves Dias, sempre ciosos de seus emblemas de retidão moral, avessos ao convívio amistoso com o conquistador branco, cuja chegada o espectro que se mostra ao Piaga descreve como “desfile de horrores”, no “Canto do Piaga” já está muito bem anunciada em Sepé e Cacambo, sobretudo no primeiro, mais incisivo nos embates verbais com Gomes Freire de Andrade, embora caiba ao segundo a mais vigorosa imprecação contra a presença do homem branco na América.

E o donaire de Lindoia, sua irrestrita fidelidade ao amado Cacambo, sua morte dolorosa e voluntária para não entregar-se ao odioso Baldeta, tudo na “Amável indiana” prenuncia Iracema.

 

Referência:

BASTOS, Alcmeno. Entre a bondade natural e o discurso ilustrado: o índio em O Uraguai, de Basílio da Gama. O Eixo e a Roda: Revista de Literatura Brasileira, [S.l.], p. 247-264, dez. 2003. ISSN 2358-9787. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/o_eixo_ea_roda/article/view/3170/3116>. Acesso em: 09 dez. 2019.

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